Bola de Neve - Um templo em que o rock e a religião vivem juntos


O roqueiro tatuado está posicionado com a guitarra em punho. A platéia de 2.500 jovens ergue os braços em culto ao ídolo. Estamos no palco de um show de rock, certo? Certo, mas mais ou menos. Dois dias atrás, aquele cenário era completamente outro. O palco era um altar. O público orava. O condutor do rebanho não era o roqueiro Rodolfo Abrantes, ex-líder do popular grupo de rock Raimundos, mas sim o pastor evangélico Rinaldo Seixas, criador e condutor da Bola de Neve Church. Estávamos e estamos num templo religioso.

Rodolfo, o músico de 33 anos, mantém-se firme no espírito rock pauleira que o revelou nos anos 90, mas agora canta exclusivamente temas que versam sobre Deus e Jesus Cristo. Nessa noite de terça 29, está lançando seu primeiro álbum-solo e evangélico, Santidade ao Senhor, pela gravadora Bola Music. Ele também é pregador e pretende ser pastor: “Sou missionário, a coisa que menos faço é ser músico. Vou, com certeza, me tornar pastor, ficar num lugar meu, numa igreja, pregando”.

“Rina”, o pastor de 34 anos, prega num púlpito que é uma prancha de surfe de cabeça para baixo, com dois golfinhos pendurados no pedestal. Atrai multidões de jovens surfistas, skatistas, fisiculturistas, lutadores de jiu-jítsu e esportistas à filosofia religiosa que ostenta o slogan in Jesus we trust e prega, entre outros motes, que “Deus é fogo” e “incendeia”. Ele também canta, nos cultos que lidera com a esposa, Denise Seixas.

O culto, que no domingo 27 duraria três horas e meia, conta com canções, sessões de adoração e uma cobrança de dízimo sem grandes pressões. À frente de um telão que projeta imagens de coqueiros, ondas gigantes e tartarugas marinhas, Rinaldo conduz um transe coletivo de expressões em línguas que “não são humanamente conhecidas”, “línguas de fogo”. Prega a separação entre “beduínos” e “esquimós” e louva os indivíduos “quentes”, contra os “mornos” (“hipócritas”) e os “frios” (distantes de Deus). No entanto, o nome da igreja é Bola de Neve.

Rodolfo também costuma pregar, em Balneário Camboriú (SC), onde mora. O músico-pregador e o pastor-cantor têm mais em comum. Ambos emergiram para a religião a partir de trajetórias de abuso de drogas. O mesmo aconteceu com suas respectivas esposas e com muitos dos freqüentadores da igreja, que nasceu em São Paulo, em 1999, e hoje tem 26 templos espalhados pelo País, especialmente em cidades litorâneas.

“Hoje em dia, todo mundo já teve alguma experiência com drogas. A nossa diferença é que procuramos falar abertamente sobre isso, sem hipocrisia”, diz Rinaldo.

Consumidor de drogas diversas dos 13 anos até 2001, Rodolfo hoje as associa com o período de maior sucesso, que a gravadora Warner alavancou: “Eu me sentia um turista. Por estar o tempo todo drogado, estava nos lugares só em corpo. Conheci o Brasil inteiro e não conheço nada do Brasil. Considero o cara doido dos Raimundos um defunto. Quando vejo imagens daquela época, dá uma coisa ruim no estômago. Não nego, porque fiz. Mas não me faz bem”.

No palco, Rodolfo roga à platéia atenção menor à sua imagem: “Quero que esqueçam meu cartaz lá fora e olhem só para Deus”. No bastidor, admite que hesitou em voltar aos palcos: “Eu tinha muito medo de virar artista de novo, de virar produto, ser comercializado. A adoração não é algo que se comercializa”.

A memória ruim do consumismo também aparece na fala de sua esposa, Alexandra, de 27 anos, pregadora e cantora: “Não é culpar as drogas, era legal. Eu amava tomar ecstasy. Mas cansei de fingir. Um dia me olhei no espelho, eu tinha silicone, megahair, plástica no nariz, unha postiça, lente de contato azul, fiz lipoaspiração com 17 anos. Nada contra, amo meu peito e meu nariz, e faria tudo de novo, mas isso tudo era o reflexo do que eu era. Olhei para mim e disse: ‘Eu sou uma farsa’”.

As únicas “marcas” exaltadas explicitamente na Bola de Neve Church são Deus e Jesus, mas, sim, o comércio e o consumismo pulsam ali, por toda parte. Entre os espectadores/adoradores, abundam marcas como a surfista Rip Curl, a Nike e até Louis Vuitton. Durante o culto de domingo, o pastor divulga um futuro culto só para mulheres, a ser conduzido por Denise, para o qual prometem-se sorteios de 40 sessões de bronzeamento, hidratações faciais e massagens relaxantes.

Na terça, muitos entrarão no show deixando quilos de mantimentos, ou até mesmo de graça. Os que gastaram os 20 reais do ingresso têm a opção de trocá-lo por uma cópia do CD de Rodolfo na Bola Music. Rinaldo diz que o estúdio de gravação da Bola Music, que fica dentro do próprio templo, foi doado. O disco sai sem nenhum contrato assinado, segundo garantem as duas partes.

Monique Evans, que se casou na Bola de Neve, circula pelo coquetel (sem álcool) de lançamento, fazendo entrevistas para a RedeTV! A mídia secular e a religiosa misturam-se no mezanino “vip”, cujas cadeiras de culto foram retiradas.

“A mídia nos deu respaldo, respeito e visibilidade. Nunca foi algo que a gente buscou, foi sempre a mídia que nos procurou. Esta é a primeira vez que temos uma assessoria de imprensa”, sintetiza o pastor, referindo-se à curiosidade que as características inusitadas do templo costumam atrair. A assessora de imprensa do lançamento de Rodolfo é uma profissional de uma das maiores empresas do ramo no Brasil, que atua ali como voluntária, por ser freqüentadora da igreja.

“A gente entende que o espaço físico não é um lugar sagrado. Sagradas são as pessoas”, diz a pastora Denise, 34 anos, para justificar a hibridez do espaço. Esportista e filha de um compositor de escola de samba, ela abre o show de Rodolfo com voz potente e reggaes de refrões que trocam o got to have kaya now de Bob Marley pelo brado de caia, Babilônia!, repetido em uníssono pela multidão.

Não se encontram pelo ambiente do show resíduos de álcool, maconha ou fumaça de cigarro. Mesmo assim, o público que grita “Jesus!” entre as canções vibra de empolgação. Ostentando nos antebraços a enorme inscrição “eu e minha casa servimos ao Senhor”, o publicitário Rafael Nakel, de 28 anos, exprime assim sua alegria: “Venho porque amo Deus. Aqui me sinto mais livre, olha quem está ali. Aqui estão os mais loucos, é o meu time”.

“Quem está ali” é o roqueiro Rodolfo, que Rafael idolatra desde os Raimundos. A diferença é que estamos num templo de louvor, e não na arena de algum festival badalado de rock, cultuando um ídolo pop, ou na pista eletrônica de uma rave, idolatrando um “superstar DJ”. Ou será que estamos, que sempre estivemos?

Fonte: Carta Capital

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